Sera sempre assim?

Boas lembrancas sao sempre boas lembras?
E mas lembrancas sao sempre mas lembras? Certo?
As segundas nunca, jamais serao esquecidas???


Quase toda menina teve uma caixinha de musica (eu me incluo nas que nao tiveram, mas lembro bem como era as das minhas amigas), abrir a caixinha e ver a bailarina rodopiando, dava uma alegria, parece que posso ouvir a musica agora mesmo, tocando aqui no meu ouvido.

****

O outono ja esta quase no fim, daqui a pouco comeca o inverno, invernao mesmo, porem agora ja esta frio, entao faz poucos dias que ligamos o aquecer, e como esse apartamento e' o maior que ja moramos, estamos nos adaptando, inclusive aprendendo a mexer no aquecedor. Quarta a noite (segundo dia do aquecedor ligado), fui dormir ja era meia-noite, nao consegui ir dormir antes, tudo por causa de uma xicara de cafe que tomei a tarde na casa de uma amiga e me deixou com uma queimacao horrivel no estomago, uma dor de cabeca sem graca e me tirou totalmente o sono.

Ao deitar o barulho (quase neutro) do aquecedor, me incomodava, levantei duas vezes, para ver se o quarto do Nicolas nao estava muito quente e voltei para a cama. Pensei que tivesse alguem mexendo nas portas ou janelas (claro que nao tinha) e quando tentei dormir novamente, olhei para o relogio e ja era quase 1h da manha da quinta. 

Dormi e por volta das 4h20 acordei para ir ver o Nicolas (sim sou meio louca, mas ele se mexe muito e se descobre e la vou eu cobri-lo), no corredor para chegar ao quarto dele, ouvi muitos barulhos de sirenes de carros de policia, ambulancias e carros de bombeiros e pensei: "Essa cidade nao para, que loucura".  Ainda bem que fui ate o quarto do Nicolas, ele estava descoberto, ajeitei o pequeno e continuava ouvindo barulhos, uns barulhos estranhos, como se fossem placas no chao e carros estivessem passando fazendo algo como um "ta" (nao sei explicar), fui ao banheiro e voltei para cama. Minutos depois o Paulo acordou e deu um salto da cama, abriu a cortina da janela do nosso quarto e vimos o que causava os barulhos que eu escutava. Ele so me disse: "Vamos ficar esperto, que a coisa ta feia!". Os "tas" que eu escutava eram explosoes.

Eu gelei e nao acreditava no que estava vendo, era um incendio horrivel, vimos um clarao, fui ate o quarto ver o Nicolas novamente e olhei para a sala, a nossa sala estava acessa com o reflexo do fogo. Algo assustador. Nao sei porque me passou pela cabeca filmar, peguei a filmadora e filmei 1 minuto (acho), enquanto filmava, abri a janela e fui ate a sacana, comecei a ouvir as pessoas gritando, me desesperei, parei e perguntei pro Paulo o que fariamos.

Entao pensamos juntos, arrumamos algumas coisas, caso precisassemos sair do apartamento, ligamos a tv para ver se no noticiario falavam algo e ficamos ali, olhando, entre uma janela e outra, entre o quarto e a sala.

As horas passaram, nao parava de chegar carros de bombeiros, de policias e ambulancias, o fogo parecia nao ceder, depois de quase 40 minutos, 2 helicopteros apareceram sobrevoando e ai que nao conseguimos voltar a dormir mesmo, nao que quisessemos, porem nao tinhamos muito o que fazer.

Chegou a hora do Paulo ir trabalhar e eu fiquei sozinha com o Nicolas, que nem se mexeu, nao ouviu nada, nao viu nada, ainda bem. Passado uns 20 minutos que o Paulo havia saido, o alarme de incendio do nosso predio disparou, e eu? Bom, minhas pernas tremiam, eu nao estava acreditando no que estava acontecendo, estavamos a uns 600/ 700 metros do incendio, e agora essa situacao emergencial.

Com o barulho do alarme o Nicolas acordou e pediu para eu dar a mao (para ele voltar a dormir) e perguntou o que era o barulho, disse a ele que nao poderia dormir mais e que precisavamos sair. Ele nao entendeu nada levantou sonolento e quando eu peguei-o no colo, ele estava molhado (havia feito xixi na cama, coisa que ele ja nao fazia a muito tempo), pediu para fazer xixi de novo, corri com ele no banheiro, saiu 2 gotas e eu troquei-o tao rapido, em segundos, peguei minha bolsa e descemos os 4 andares de escala com o barulho ensurdecedor do alarme.

Liguei para uma amiga e fui para casa dela, confesso que nao pensei muito na hora, mandei uma mensagem do celular para o Paulo e la fomos nos. Eu so queria sair daquela cena toda,  daquela agitacao, do movimento das pessoas desesperada, queria sair, se pudesse teria saido correndo, porque naquele momento as minhas mas lembrancas voltaram tao rapidas, como se a caixinha de musica, que eu nunca tive, estivesse sido aberta por alguem, e a musica tocava novamente: lembrei-me das vezes que fui assaltada - e nao pude fazer nada, lembrei-me da vez que sofri um sequestro relampago na porta da minha casa e passei quase 4 horas com um resolver na minha cabeca, lembrei-me tambem do dia que meu pai trocou tiros com bandidos e eu era pequena ao ouvir o barulho do carro que estavam roubando, acordei (sonambula) e perguntei para minha mae onde meu pai ia que nao ia levar a gente com ele, nao teve como nao lembrar das vezes que peguei trem lotado na linha Corinthias- Itaquera, sentido Bras as 5h da manha para ir trabalhar e ao chegar em Sao Caetano (meu destino final) minha calca estava suja, imunda, por atos irresponsaveis de homens sem escrupulos e sem limites, a sensacao estranha do dia dos ataques terrorristas aqui de Londres, em julho de 2005 voltararam a tona,  todas as mas lembrancas reaparecem, todas elas uma por uma, aquelas situacoes em que o medo prevale e nos perdemos o controle da situacao, nao sabemos o que fazer ou o que ira acontecer depois.

Sem dizer que agora me encontrava numa situacao ainda mais dificil, pois eu nao so precisava me proteger (se fosse necessario), mas proteger tambem outro ser que depende totalmente de mim, o Nicolas. Que medo!

Sera sempre assim? Sera que as feridas nunca se curam, nao e' possivel apaga-las para sempre.

De ontem para hoje nao dormi quase nada, minha cabeca doi, que parece que vai explodir. Continuo ouvindo as sirenes dos carros de policia, de bombeiros, as ambulancias. Essa noite tambem o Paulo, dormindo, levantou da cama e abriu a janela, voltou a dormir, falei com ele e ele nao respondeu, perguntei hoje de manha o que havia acontecido e ele nao lembrava. Ou seja, nao sou so eu que estou em estado de choque pos tensao, ele tambem. 

Claro que o que passsamos nao foi nada, perto do que as familias mais cercanas vivenciaram. O trabalho da equipe de resgate, foi de maxima excelencia dessa vez, eles conseguiram evacuar 150 aprtamentos, ninguem ficou ferido e so 10 pessoas foram hospitalizadas por terem inalado um pouco de fumaca; cerca de 150 homens trabalharam nessa operacao, de tirar o chapeu para eles.

Nao quero tomar nada, continuo com meus chas e espero essa noite dormir um pouco melhor. Agradeci muito a Deus por ninguem ter morrido e por nos estarmos bem, agradeci muito aos amigos que nos acolheram e os que ligaram ou mandaram mensagem no celular perguntando se estavamos bem, pois as imagens da tv mostrava nossa rua, alguns reconheceram e ficaram preocupados.

Ha situacoes que nao temos controle e isso nos descontrola algumas vezes (ou todas no meu caso), espero que isso passe logo e minha caixinha de musica com as boas lembrancas volte a tocar.

Nao ia falar nada aqui, nem comentei nada com meus pais, para eles nao se preocuparem, mesmo porque ja passou e agora so quero tentar esquecer; mas escrever e' uma forma de tentar organizar meus pensamentos, e como nao estou conseguindo dormir, aqui estou eu. Desculpa pelo texto depressivo, angustiante ou sei la mais o que.

Mais informacoes sobre o acontecimento aqui.

Foto da caixa de musica do Flickr de Peixdeterra, essa foto foi tirada daqui, com todos os creditos.